Nascida depois do famoso 25 de Abril de 1974, orgulho-me de saber muito mais sobre ele, do que a maioria das pessoas.
Livros e livros, horas e horas, papeis rasurados, histórias escondidas.
E ainda me falta aprender tanto, mas é algo que estudarei até tudo saber (ou seja, até morrer, porque muito ficará sempre por contar).
Todos sabemos a base "homens contra o regime, revoltaram-se e safaram-se".
Odeio que digam "A Revolução dos Cravos foi muito boa. A única revolução sem mortos."
Sem mortos? E aquelas três pessoas mortas não contam?
É verdade que não foram mortos pelos revolucionarios, mas sim pelo regime instaurado, mas isso não faz com que não sejam mortos.
Deixo aqui um texto que vinha numa revista, e pelo qual me apaixonei:
"Há uns tempos encontrei um caderno do tempo em que era artista. Até aos quatro anos a coisa corria normalmente: havia uma família de aranhiços que era suposto ser a minha, evoluindo depois para umas borboletas, umas casas, umas noivas, uns príncipes e princezas em variadas fases da sua existência.
Aos quatro anos, tudo acabava: há páginas e páginas de monstros com couves-flores espetadas e uns gajos ás manchas com chapéus esquesito e penas nos bonés. Segundo me explicaram depois, eram chaimites, cravos e soldados. O mais estranho é que eu nunca tinha visto um chaimite, nem um soldado, e cravos só na praça, porque no dia de revolução tinha ficado em casa da minha avó dentro do armário a mascarar-me com estolas, diamantes falsos e luvas até ao cotovelo, tudo do tempo em que a família era burguesa e ainda não estava disperta para os amanhãs que cantam.
Uma infância na revolução podia ser divertida, mas na altura eu não sabia. Só sabia que a minha amiga Teresa tinha uma Barbie com fatinhos de noiva, de hospedeira e de dona de casa, e sapatinhos que passávamos a vida a encontrar nos lugares mais estranhos.
Eu tinha a Olga, que não era noive, nem hospedeira, e muito menos dona de casa, valha-nos São Lenine: era do meu tamanho e loira-nazi, embora tivesse vindo da URSS trancada no porão a deitar hálitos de tundra pelas narinas, e não se podia vesti-la e despi-la, porque ela calçava para aí o 43, e quando eu acordava a meio da noite, conseguia ouvi-la a dar ordens á KGB no escuro.
Noite sim, noite sim, havia comício. Era o equivalente a uma overdose de festa do Avante arraçada de feira popular, mas não tinha carrocéis de gonzos mal oleados nem teias de aranha sobre esqueletos de plástico verde incandescente nem o Manolito a arriscar a vida no poço da morte na mota a fazer tracatracatrac cada vez mais depressa á volta do poço e á volta da morte, tinha uns gajos a gritar coisas incompreensíveis e a esticar o punho. Um tipo barbudo apareceu-me certa vez e rosnou, visivelmente preocupado: "Então camarada, ainda de chucha?"
De vez em quando também havia catecismo para nós, os pequeninos. Lembro-me de uma peça de teatro com uns pintainhos amorosos, em que vinha um pintainho amoroso e dizia para outro pintainho amoros: "Olá, vens da clandestinidade?"
Para grande desgosto de família, nem eu nem o meu irmão parecíamos devidamente revolucionários. Ainda se falou em pôr-nos nos Pioneiros. Perguntei de que cor era o lenço. Olharam para mim como se tivesse perguntado de que cor era o cavalo branco do D. José, e algo me disse que não ía ser "cor-de-rosa". O meu pai suspirou e pôs-me no balé.
Foi o fim da minha carreira na revolução. Mas não se perdeu tudo: pelo menos,
havia fotos do Bolschoi no meu quarto. Não era o bosto de Lenine, mas sempre era um bocado da mãe-Rússia."
Catarina Fonseca
Jornalista e Escritora
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